sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Qual o modelo agrícola?

A concentração da terra no Brasil sempre foi elevada. Segundo o Censo agropecuário de 2006 do IBGE o índice de Gini da terra subiu 1,9% na média nacional de 1995/1996 a 2006, para 0,872 pontos. Quanto mais esse índice estiver perto do número 1, maior é a concentração de áreas de cultivo. De acordo com o instituto, enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total, que é de 354.865.534 de hectares, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentra mais de 43%, quase a metade da área total.

Não somente a concentração de terras é nociva ao país, mas, mais ainda, a concentração de terras improdutivas. Da área total, a área com pastagens ocupa 172.333.073 hectares. A rigor são áreas de pecuária extensiva e de baixíssima produtividade. A implementação de um sistema mais racional e intensivo na pecuária bovina poderia liberar até 90.000.000 de hectares para mais que dobrar a área com lavouras, que hoje ocupa 76.697.324 hectares. Aí está o problema mais grave. Uma grande fazenda com lavoura de soja é diferente de uma grande fazenda de pastagem extensiva. Uma apresenta a mais avançada tecnologia e a outra a mais atrasada. Dessa forma, elevar os índices de produtividade para efeito de desapropriação para reforma agrária signifa atacar o problema do latifúndio improdutivo, especialmente na pecuária extensiva.

Essa é a maior contradição no campo e que ainda hoje obstrui a reforma agrária e as vias de desenvolvimento. Acrescente-se a valorização patrimonial da terra e a especulação fundiária, símbolo de ostentação de riqueza, exclusão social e do êxodo rural. Há muito o país se tornou essencialmente urbano e, apesar disso, existe um enorme sentimento pela terra em amplas parcelas de trabalhadores do campo e de cidades do interior do país. Esses contingentes engrossam as fileiras dos movimentos de luta pela terra. Suas demandas são legítimas e democratizar o acesso a terra é um componente que está acima de qualquer racionalidade econômica, pois promove a distribuição de renda, a geração de emprego e renda e a valorização dos trabalhadores.

Sabemos que o Brasil é bastante complexo. Trata-se de um país continental, de economia integrada e diversificada e com um enorme mercado interno em desenvolvimento. No campo temos uma infinidade de paisagens, desde aquelas dominadas pela agricultura familiar até aquelas dominadas pelo grande empreendimento agropecuário. O sistema agropecuário brasileiro possui variados tipos de unidades de produção com funções e papéis específicos, operando a produção em ambientes diversificados e com diferenciados padrões tecnológicos. A rigor, como dizia Lênin, não é o tamanho da área que define um grande volume de produção, mas sim o nível de produtividade, pois quanto mais este se eleva, menos área é necessária e menores são os custos.

Eric Hobsbawm diz em seu livro, a Era dos Extremos, que não existiu no século XX um padrão único de agricultura a ser seguido e que o fator de sucesso não teve a ver com os regimes políticos. Para exemplificar, refere-se ao modelo agrícola do socialismo soviético como um modelo ineficiente. Já o modelo socialista da Hungria, estatal, como um dos mais prósperos da Europa. Diz que agricultura familiar francesa é irracional e o sistema familiar estadunidense muito bem sucedido. Nessa trilha, podemos dizer, então, que a agricultura no Brasil passa como uma das mais competitivas e dinâmicas do planeta, situando-se entre os primeiros produtores agrícolas do mundo, como EUA capitalista e a China socialista. Dessa forma, é natural que em nossa balança comercial as commodities agrícolas participem com um peso mais relevante do que qualquer outro país. O desafio maior é agregar valor aos produtos exportados, a exemplo da Holanda, que é grande exportadora agrícola, mas importa produtos básicos, processa-os e os reexporta.

Dessa forma, na atual fase de transição da nação brasileira - de equilíbrio instável de forças no poder, mas que possibilita um avanço da democracia, da soberania nacional e do desenvolvimento acentuado das forças produtivas, com valorização do trabalho e distribuição de renda - temos que compreender o papel da agricultura no processo de mudança. Com o aumento geral da produção agropecuária, pode-se dizer que somos um dos poucos países a alcançar o nível de “segurança alimentar”. E esta também é uma condição estruturante para projetarmos o Brasil como um país desenvolvido, moderno e socialmente justo.

Por isso considero deslocado da realidade do meio rural brasileiro a promoção de um antagonismo exagerado entre agricultura familiar e agricultura empresarial; pequena versus grande produção e agricultura de gêneros domésticos e agricultura de exportação. Existiria uma contradição entre a agricultura familiar e a indústria rural? E a tecnologia moderna? E a grande produção? E o comércio mundial? A rigor, penso que não.

Segundo Marx, uma revolução política pode transformar instantaneamente em pó tudo que é sólido como uma rocha. Contudo, um processo de mudança econômica, em tese, demanda um tempo mais prolongado para a transição, a não ser à custa de uma queda acentuada da dinâmica produtiva enquanto não se consolida o novo modelo econômico. Daí corre-se o risco de desarticulação e desestruturação das matrizes de produção estabelecidas, o que não interessa a nenhum regime político.

Desde a década de 1930 fizemos um enorme esforço para a industrialização. Conseguimos o título de país industrializado no período que vai até a década de 1980. Nessa década, chamada de década perdida, iniciou-se um período de crise provocada pelo pesado endividamento externo para financiar o II PND, plano econômico lançado a partir de 1974 com o objetivo de realavancar as taxas de crescimento aos patamares dos anos do “milagre brasileiro”, do período 1968-73. Contudo, o segundo choque do petróleo em 1979 e a alta magistral dos juros nos EUA abortaram esses planos e o país estagnou por duas décadas, até 2003, ou melhor, a indústria estagnou.

Apesar de o Brasil, na divisão internacional do trabalho, ter superado o status de país agrário e se tornado uma nação orgulhosamente industrializada, foi surpreendido com uma nova categorização, a de “país industrializado de segunda classe”, subserviente, dependente e complementar à economia estadunidense. Sob forte impacto da globalização conservadora, a indústria brasileira passou a perder terreno e competitividade e, pior, nem mais passou a existir uma política industrial. Esse processo teve início com a vitória de Fernando Collor em 1989, mas foi com os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso que o desmonte nacional se deu de forma mais intensa e profunda, onde seria sedimentada a condição neocolonial com a implantação a ALCA, Área de Livre Comércio das Américas. Contudo, após uma viragem política em 2002, o governo Lula e os brasileiros rechaçaram esta iniciativa.

O setor agrícola teve um comportamento bem diferente. Passou a crescer ano após ano e na vanguarda internacional, tanto na produção como no comércio, ganhando competitividade e novos mercados, onde se destaca a carne bovina, de aves, o complexo da soja, café, açúcar, álcool combustível e outras commodities. Nota-se também, nos últimos anos, a queda sistemática do preço da “cesta básica”, o que vem gerando aumento real dos salários e do poder de compra dos trabalhadores à medida que a renda familiar é cada vez menos comprometida com a alimentação. A isso se deve ao avanço da indústria, da mecanização, da especialização, da técnica e dos empreendimentos modernos no campo nas últimas duas décadas.

Com vista à produção para o mercado interno, por exemplo, destacam-se os avanços no complexo leiteiro que na década de 1980 apresentava uma situação muito desfavorável. Hoje este setor se modernizou como um todo, passando a contar com equipamentos e instalações de ponta da própria indústria nacional, cresceu, ganhou escala e obtém excelentes índices de qualidade, produtividade e produção, abastecendo relativamente bem o mercado interno. O setor de frango de granja também experimentou um forte desempenho. No intervalo de tempo entre o Plano Cruzado e o Plano Real, isto é, de 1987 a 1995, sua produção praticamente dobrou e o preço caiu cerca de metade do seu valor entre um plano e outro, a ponto de alguns economistas atribuírem o sucesso do plano real ao franguinho, que custava na época cerca de R$ 1,00 por Kg.

Mas as políticas de subsídios e de créditos aos produtores familiares ainda estão muito aquém de um patamar praticado em países europeus, por exemplo. Podemos dizer que nossa política agrícola é relativamente liberal, pois ela é insipiente como mecanismo de proteção dos produtores familiares contra as leis do mercado. Observa-se uma competição cada vez mais acirrada, interna e externa, um protecionismo escancarado dos países ricos e os efeitos nocivos da concentração e centralização de capitais e de terras, afora as condições quase sempre adversas da produção no campo. Por isso é necessário fornecer os meios e as condições adequadas para o agricultor familiar participar desse jogo com um patamar mínimo de organização da produção sob bases científicas e tecnológicas, com planejamento, visão empreendedora e recursos financeiros acessíveis e suficientes para realizar todas as etapas da produção e do comércio. Tudo isso associado ao desenvolvimento do cooperativismo e da assistência técnica pública no Brasil.

Portanto, vejo o campo brasileiro como um complexo e diversificado sistema de unidades de produção rural, sem um padrão claro a definir, onde as unidades familiares demandam um contínuo aperfeiçoamento técnico e políticas agrícolas específicas. Somem-se os projetos de reforma agrária que, sobrepondo ao latifúndio improdutivo já nascerão modernos, mas demandarão um nível de desenvolvimento tecnológico minimamente satisfatório. O presidente Lula diz corretamente em seu programa de governo que é preciso elevar a qualidade das intervenções nos Projetos de Assentamentos. Contudo, uma vez satisfeita as condições de crédito, assistência técnica e outras políticas agrícolas fundamentais, é importante que as unidades de produção rural, pequenas ou grandes, participem, em conjunto com os demais setores produtivos, do grande esforço de construir uma nação mais próspera e avançada.

Murilo Ferreira da Silva
Direção Estadual do PCdoB